Millor Fernandes:


Jornalismo, por princípio, é oposição – oposição a tudo, inclusive à oposição. Ninguém deve ficar acima de qualquer suspeita; para o jornalista, não existem santos.

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

ÉDIPO, KUNDERA E A ARROGÂNCIA DA IMPRENSA



Sempre que converso com amigos ou alunos, costumo dizer que o mais ferrenho direitista é o ex-esquerdista. Assim como um ex-fumante, o ex-esquerdista defende com unhas e dentes sua mudança e tenta a todo custo mostrar, a partir do seu envolvimento com o outro lado, o quanto ele é nefasto. Confesso que sou um pouco assim. E quando digo que já fui um apreciador da doutrina marxista, com direito a camisa do Che e todo o resto do pacote, ficam curiosos por saber o que me fez mudar e digo a verdade: os livros.

Um desses livros foi o romance A Insustentável Leveza do Ser, de Milan Kundera. Obra mais conhecida do autor tcheco e já adaptada para o cinema, narra a história de Tomas, um jovem médico, atraente e com certa respeitabilidade, o que lhe garante algum conforto na Praga de 1968. Com a Primavera de Praga como pano de fundo, a narrativa faz uma análise existencialista e filosófica do homem e de como se relaciona amorosamente quando desprendido de ilusões românticas. Mas não é a esse lado mais filosófico do texto que quero me ater e sim a algo mais sutil e relevante e que venho tratando em minhas análises que é o panorama político e como uma narrativa de ficção pode mudar convicções ideológicas tão profundamente arraigadas (como no meu caso).

Kundera foi crítico ferrenho da Cortina de Ferro durante a Guerra Fria, muitos livros seus abordam como era a vida na antiga Tchecoslováquia no período em que o país fez parte do bloco comunista e nesse caso ele foi bem mordaz com sua reprovação do regime. Na trama, o protagonista tem um artigo seu publicado num jornal de grande circulação que logo causa desconforto nas autoridades do país. Lembremos que parte da narrativa acontece durante a Primavera de Praga e seu desenrolar vão pelos anos seguintes. Como seu artigo (como foi dito antes) causa indignação nos poderosos locais, é pedido a ele que se retrate publicamente com outro texto de própria autoria. Ao se recusar, tem sua vida destruída pela máquina do Estado. Tomas perde tudo: prestígio, carreira e termina sua vida como um modesto fazendeiro no interior do país. O regime o engole e cospe apenas um resto de homem.

A crítica que ele faz ao governo é bem emblemática, para dizer a verdade. Ao analisar a obra Édipo Rei no seu texto, o jovem médico compara os governantes que permitiram a entrada dos soviéticos, levando seu povo ao sofrimento, ao rei da peça. Contudo, ele aponta a diferença moral entre ambos – e é aí que sua vida é destruída – enquanto Édipo, ao saber de seu erro, que leva seu povo a ser assolado por pragas (na peça, o crime dele foi matar o pai e desposar a mãe, como fora vaticinado no seu nascimento), fura os próprios olhos como autopunição pelo mal que infligiu, os poderosos de seu país fingem-se de cegos, ignorando o sofrimento causado à população e não praticam esse auto flagelo, como o rei tebano, não abrem mão de algo precioso – seus cargos – pelo bem da nação.

Essa obra como um todo, mostrou-me um lado do socialismo que até então eu não conhecia. Já havia lido minhas primeiras distopias e comecei a entender o que estava acontecendo com mais clareza. Depois vieram outras narrativas, porém, o impacto dessa no momento em que li foi um divisor de águas. E esse livro seria mais um na lista dos que me marcaram se, repetidas vezes, ao longo dos últimos 10 anos (ou um pouco mais), não retornasse ao artigo de Tomas e ao holocausto de Édipo a cada nova lida nas notícias, a cada vez que vejo como agem os líderes de esquerda e seus intelectuais opereta que tendem a negar a verdade, mesmo que isso custe a integridade moral ou mesmo física de toda a população.

Um bom exemplo disso é a cobertura da imprensa durante todo esse ano. e quando me refiro à imprensa, falo da oficial, dos grandes veículos de comunicação, aquelas que entram no lar de milhões de brasileiros e é composta majoritariamente de jornalistas tendenciosos e que em grande parte do tempo não divulgam a verdade pura, simples e imparcialmente, ficam praticando um jornalismo tendencioso e que beira à torcida organizada, com análises imparciais repletas de paixões e com a neutralidade de um cabo eleitoral muito bem pago.

Todos acompanharam seus vexames nos últimos tempos, seus vaticínios perfeitos onde previram o fim da Operação Lava Jato, a não aprovação do Impeachment e depois absolvição de Dilma, a escapada de Eduardo Cunha e no fim as torcidas e campanhas eleitorais veladas ao candidato do Rio de Janeiro, Marcelo Freixo e da candidata à presidência americana Hillary Clinton. E nem estou mencionando a tentativa de assassinato de reputações com seus opositores, respectivamente: Marcelo Crivella e Donald Trump.

E o que faz com que eu pense em Édipo e seu martírio é justamente o comportamento da imprensa brasileira (e americana também) em não fazer uma auto crítica, é não olhar para os sucessivos erros e admitir que falhou fragorosamente, é não reconhecer e, simbolicamente, sacrificar a reputação de imparcialidade que tanto ostenta sem na verdade cumprir – numa postura tão hipócrita quanto daqueles que finge apontar – e retirar-se pelo bem maior dos que leem ou ouvem seus arroubos de oráculos modernos. Ela se arvora da alcunha de Quarto Poder e age de forma ditatorial escolhendo aqueles que serão ungidos no altar de suas prensas sem pensar que seus eleitos podem destruir o pouco que os mais sofridos possuem. E não se desculpam. E ao perceberem que suas mentiras foram expostas e estão sujeitos ao escárnio público, tentam distorcer a verdade, inflamam os mais ingênuos ou mal-intencionados e tentam a todo custo distorcer a realidade que está cada vez mais aparente, graças principalmente à internet e àqueles que buscam a verdade, não importa onde esteja.

Assim como os políticos, a imprensa oficial também é amoral. Assim como eles, precisa fazer um mea culpa, reconhecer que falhou e abrir mão de sua reputação, como Édipo abriu de seus olhos. A imprensa precisa se dar em holocausto às divindades da verdade e da justiça, ficar ao lado daqueles que os mantém e que estão fartos de suas inverdades: o leitor, o espectador. Kundera soube como poucos nos mostrar essa verdade e como poucos apontar a amoralidade daqueles que deveriam zelar por nós. Muitos livros nos entretêm e muitos nos mudam, abrem nossos olhos, seja de forma leve ou de forma intensa e nesse caso, Kundera deu-me um tapa na cara para que eu visse a verdade e é o que busco desde então. Até a próxima.

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